Por Magno Francisco Pereira, da área cível do Lassori. Artigo publicado no portal da revista Capital Aberto
A morosidade e a complexidade do sistema judiciário são desafios históricos. No entanto, uma transformação impulsionada pela tecnologia está redesenhando o cenário da justiça e da cobrança. O impacto não é apenas incremental; é uma mudança de paradigma que move o setor de um modelo reativo e analógico para um ecossistema proativo, digital e orientado por dados.
Este movimento é impulsionado por duas frentes principais: a modernização interna do próprio Judiciário e o crescimento exponencial de plataformas digitais externas que resolvem pendências antes que elas cheguem aos tribunais.
Dentro dos tribunais, a digitalização de processos — por meio de sistemas como o PJe e o e-SAJ — representou o primeiro grande avanço rumo à modernização da Justiça brasileira. No entanto, a verdadeira transformação ocorre agora, com a aplicação de inteligência e automação sobre o imenso volume de dados processuais.
A Inteligência Artificial começa a ocupar um papel estratégico: triando processos, agrupando demandas de massa e até sugerindo minutas de decisões em casos repetitivos. Ferramentas de jurimetria — que aplicam métodos estatísticos ao Direito — já permitem mensurar taxas de êxito, identificar padrões de julgamento e prever a duração média de um processo, fornecendo bases concretas para decisões mais eficientes.
Na recuperação de crédito, a tecnologia também revolucionou a efetividade das execuções. Sistemas como o SISBAJUD, que bloqueia valores em contas bancárias, e o RENAJUD, que impõe restrições a veículos, tornaram a localização e constrição de bens muito mais ágeis.
Hoje, ordens de penhora que antes levavam semanas podem ser cumpridas em minutos, elevando significativamente os índices de recuperação e a confiança na execução judicial.
Enquanto o Judiciário se moderniza por dentro, um ecossistema de lawtechs e fintechs floresceu, focado em evitar o litígio. É aqui que a recuperação de crédito e a resolução de disputas convergem.
O modelo antigo de cobrança, baseado em call centers, era caro, ineficiente e gerava alto atrito com o cliente. As plataformas digitais inverteram essa lógica usando dados e autoatendimento.
Em vez de ligações em massa, na inteligência de dados a IA analisa o perfil do devedor e calcula a “propensão ao pagamento”, definindo a melhor abordagem, o melhor canal (WhatsApp, SMS, E-mail) e a melhor oferta de negociação.
O autoatendimento tornou-se o grande diferencial. Ambientes digitais permitem que o próprio devedor consulte pendências, simule condições e conclua acordos de forma autônoma, sem o constrangimento da negociação direta. Essa dinâmica elevou a eficiência e reduziu o atrito, ao mesmo tempo em que tornou a experiência mais simples e menos invasiva.
Quando a pendência não é uma simples dívida, mas uma disputa — como em casos de produto não entregue ou cobrança indevida — entram em cena as plataformas de Resolução de Disputas Online (ODR). Esses sistemas aplicam métodos digitais de negociação, mediação e arbitragem para solucionar conflitos de forma mais ágil, acessível e automatizada, oferecendo uma alternativa concreta à lentidão do processo judicial tradicional.
No Brasil, o Consumidor.gov.br é o maior exemplo. É uma plataforma pública e gratuita onde o consumidor registra uma reclamação e a empresa tem um prazo para negociar diretamente, resolvendo milhares de conflitos que, de outra forma, se tornariam processos judiciais.
A fronteira entre “cobrança” e “disputa” está se tornando cada vez mais tênue. O avanço mais sofisticado nesse cenário é o das plataformas integradas, capazes de gerenciar todo o ciclo de vida de uma pendência, desde o diagnóstico do problema até o encaminhamento automático para a solução mais adequada.
Os superapps — como Nubank e Mercado Pago — são o exemplo mais evidente dessa convergência. Em uma única interface, o usuário pode tanto parcelar uma fatura (fluxo de cobrança/crédito) quanto contestar uma compra (fluxo de disputa/ODR). Nos bastidores, a inteligência artificial faz o diagnóstico em tempo real: trata-se de uma questão de capacidade de pagamento, que exige uma rota de negociação, ou de mérito da cobrança, que demanda um fluxo de mediação?
Esse ecossistema unificado, onde dados de disputas alimentam os modelos de crédito e vice-versa, é o futuro. A Serasa, por exemplo, já atua como um ecossistema: é um bureau de crédito (dados), opera o Limpa Nome (plataforma de negociação) e oferece às empresas soluções de gestão de risco.
Apesar dos avanços, essa revolução traz desafios. A proteção de dados (LGPD) é crucial, pois esses sistemas lidam com informações financeiras e pessoais sensíveis. Além disso, a exclusão digital é uma preocupação real, pois nem todos os cidadãos têm acesso ou habilidade para navegar nesses portais de autoatendimento.
O futuro aponta para uma integração ainda maior, onde a justiça e a recuperação de crédito deixam de ser um “local” (o tribunal, o call center) para se tornarem uma “função” digital, acessível, rápida e baseada em dados.
A digitalização da Justiça e do crédito não é apenas um avanço operacional; é um reposicionamento estrutural do próprio conceito de acesso à Justiça. Quando algoritmos passam a mediar decisões e acordos, o Direito deixa de ser apenas um sistema de normas e passa a ser também um sistema de dados. Essa transição exige vigilância constante sobre ética, transparência e inclusão, sob pena de reproduzir no ambiente digital as desigualdades do mundo analógico.
O desafio agora não está em provar a eficiência da tecnologia — isso já é um fato —, mas em garantir que a inovação sirva à cidadania e não apenas à conveniência. A Justiça do futuro será medida não pelo número de processos julgados, mas pela capacidade de resolver conflitos de forma justa, acessível e compreensível para todos.
O caminho está traçado: a tecnologia já reconfigurou a cobrança, a mediação e a execução. Falta agora consolidar um ecossistema digital que una eficiência e legitimidade — porque, em última instância, a verdadeira revolução não é digital, é de confiança.